domingo, 12 de julho de 2009

Num ônibus porto-alegrense... (crônica)

Tanta gente reunida num curto espaço, sentada ou espremida em pé, cada qual com seus problemas. Não contando o atraso iminente, o olho no relógio... A maioria não pronuncia nenhuma palavra, mantendo o semblante fechado. Há quem leia o jornal para passar o tempo. Tem aqueles que procuram dar uma última revisada no polígrafo de universidade, a poucos minutos do professor aplicar a prova. Ou simplesmente se desligam dos acontecimentos, com MP3 players a postos, sintonizados em uma rádio FM ou executando uma das músicas selecionadas nos respectivos playlists. É o ambiente diário no interior de um ônibus da linha T1 Direta.

Nesse marasmo rotineiro, é possível ouvir o toque de um telefone celular. E a dona do aparelho, sortuda por estar relaxada no assento ao contrário dos que permanecem em pé se apoiando nos ferros prateados, o atende, enquanto observa um poema bastante sugestivo colado no vidro da janela.

Um erro na janela do ônibus
É um erro passageiro

Quando alguém atende o celular no veículo, o monólogo parece ser universal:

- Alô! Eu já tô chegando, tô no ônibus! Tchau!

O cobrador, colocado em sua cadeira, boceja. Irá encarar mais um dia de trabalho árduo. Muitos divergem na agilidade. Por exemplo, uns deixam os estudantes que postam carteiras escolares passarem direto na catraca. Mas outros fazem os jovens passageiros esperarem uns segundos, já que seguram a sua carteira para anotar na tabela os números de cada um. Nesse último caso, dependendo do movimento da parada, acabam provocando grandes filas e iminentes atrasos. Nem é preciso comentar os assobios ou o “fecha”, senha para que a porta traseira seja fechada a fim de que a viagem prossiga.

No painel acima da direção do ônibus, há a clássica frase “Não fale com o motorista”. Porém, volta e meia alguns idosos, dispensados de pagar passagem, iniciam uma conversa com o condutor, que consegue dialogar sem se distrair na empreitada. O cobrador também costuma participar. Quando não são pessoas com mais de 65, os encarregados de desobedecer a clássica norma do transporte coletivo passam a ser funcionários da Carris, de expedientes encerrados. O teor do papo geralmente é animado, com as vozes sendo ouvidas até por quem está no fundão.

Num dos assentos, um jovem casal de namorados troca carícias, coincidentemente abaixo de mais uma poesia fixada na janela.

Beijo
Um segredo dito
À boca
No lugar do ouvido

O vão central para cadeirantes é quase sempre ocupado por passageiros sem lugar para sentar. Mas quando surge um passageiro portador de deficiência física, é de se exaltar as mobilizações de motorista e cobrador. Ambos abandonam seus postos, soltam uma rampa presa no piso, e ajudam a trazer o cadeirante para o interior do veículo. Em função da ação executada, o ônibus fica parado em torno de um minuto até continuar seu trajeto.

Sentada na cadeira de rodas, a passageira, que aparenta não possuir os movimentos tanto de membros inferiores quanto superiores, fixa seu olhar para a parte interna do ônibus a fim de explorá-lo. Permanentemente com a boca aberta, de semblante semelhante a um indivíduo vegetativo, a moça, que aparenta ter uns 20 anos, mostra ter curiosidade sobre tudo o que lhe cerca. Chega a lembrar um bebê em um lugar diferente de sua casa ou até um animal fora do habitat natural.

Ao seu lado, e segurando a sua mão, permanece de pé uma senhora de mais ou menos 50 anos, mas que aparenta mais provavelmente em função dos problemas com a doença da filha. É notório que prevalece na mãe um espírito guerreiro, com predominância do otimismo, graças à feição que chega até a descrever tranqüilidade. Guerreira mesmo, porque é difícil disfarçar a aflição no patamar irreversível em que sua filha se encontra. A viagem da cadeirante e de sua mãe dura poucos metros. O ônibus pára mais uma vez para que motorista e cobrador possam retirá-la do veículo.

Vai-se a luta, entra em cena a soberba. A mais ou menos um quilômetro do Shopping Iguatemi, ouve-se um grito da porta traseira.

- Ei, quero sair!

Poucos notam o protesto. Daí sua continuação.

- Ô motorista! Abre essa porta! Já passou da minha parada.

Por mais incrível que possa parecer, o princípio de fúria é pertencente a uma senhora, também aparentando mais de 50, porém bem mais produzida com relação à mãe da menina com paralisia cerebral. Bem vestida e com maquiagem exagerada, lembra aquelas grãs-finas da alta sociedade ou até mesmo mãe da vilã e, ao mesmo tempo, sogra da mocinha pobre de novela mexicana. Sua presença no ônibus é tão inusitada quanto um executivo de terno e gravata na praia.

O cobrador justifica à mulher revoltada o seguimento do trajeto por parte do motorista.

- Esse ônibus é de linha direta, não pára em todas as paradas. Agora só no Iguatemi...

“Pára” e “paradas” numa mesma frase pelo menos no Sul não soa tão feio. Afinal, alguém já notou a gauchada se referir a um “ponto de ônibus”? O mesmo serve para outras expressões como “goleira” e “sinaleira”. Voltando ao atrito entre a passageira e o motorista: as palavras do cobrador entraram por um ouvido e saíram pelo outro. E continuou gritando:

- Estou atrasada para meu compromisso. Vai abrir essa m... ou não?

Todos os demais presentes no ônibus presenciavam aquela irritação em excesso, bastante característica do estresse. Como partia de uma senhora indefesa (ao menos no biótipo), algumas risadas com as mãos levadas à boca já eram comuns no interior do veículo, que seguia em frente e cada vez mais distante do lugar onde ela pretendia descer.

Cansada de gritar e percebendo que o cobrador não lhe dava mais confiança após este explicar por duas ou três vezes o motivo pelo qual o ônibus não parava, a mulher passou a investir em pontapés na porta do veículo. A essa altura do jogo, já virara o centro das atenções. Dez entre dez olhos fitavam a senhora com porte de madame partindo para a ignorância dentro de suas limitações. Tanto que sequer notavam um dos poemas colados que involuntariamente ironizava a situação.

Cria, imagina, inventa
Usa a parte colorida
De sua massa cinzenta


A poucos metros do ponto no Shopping Iguatemi, a senhora, já ciente de que seu escândalo fora inútil, resmungou alto:

- Ainda bem que vou sair desse inferno e voltar para o meu Rio.

Um dos jovens passageiros que se divertia com a cena aproveitou para desmoralizá-la ainda mais, utilizando o conhecido orgulho de ser gaúcho:

- Aqui que é terra boa. Rio de Janeiro é uma m...

As gargalhadas já proliferavam no ônibus, e o cobrador se juntava à turma, com o sorriso até os dentes escancarado. A mulher, ao ver que até ele lhe debochava, resolveu tirar a vassoura da estante e ferver a água do caldeirão:

- Vai rindo vai! Você não sabe do que eu sou capaz! Um dia você vai se ver comigo!

Ecoou então em todo o ônibus o coral de um gemido de espanto. Lógico que em tom de ironia.

Até hoje o cobrador está curioso para saber como será a vingança da senhora estressada. Na realidade, ela deve se lembrar com bom humor o incidente sob o sol das areias de Copacabana. Para a gauchada, a verdadeira Cidade Maravilhosa está às margens do rio Guaíba.

O passageiro do T1, tanto de linha normal como direta, hoje se surpreende ao ver um telefone via cartão em pleno interior do veículo. Porém, surpreso com a novidade – pioneira no país -, ele ainda a fita espantado, sem saber como usá-la. Quem sabe esse aparelho telefônico não inspirará novas histórias dentre a monotonia das viagens de ônibus.

Mas... monotonia, mesmo?

Crônica escrita em 2007

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